Uma amiga me chamou pra ver a tal peça. "Vamos, Zeca! É no SESC Paulista e é uma história de um casal." Eu que não sou de recusar convite se não tiver uma objeção coerente aceitei a proposta e segui desavisado pra ver a tal história de amor do casal. Fomos em 3 amigos. No palco mais 4 encenavam numa entrega generosa repleta de paixão que quando se vê no teatro, logo se sente abençoado pela graça da arte da repetição deste tipo de manifestação artística. Na platéia outros tantos, talvez não desavisados como eu, chegavam e se acomodavam a pedido dos atores que alí no tablado se aqueciam para a contação do envolvimento destes dois funcionários que numa repartição no centro de São Paulo passam a vivenciar a compaixão e o prazer da companhia do outro, instigando a inveja e o preconceito dos demais colegas de trabalho.
Desavisado eu não sabia que se tratava de um texto de Caio Fernando Abreu, o escritor e jornalista gaúcho morto em 1996 em decorrência de complicações provocadas pela Aids. Cheguei a pensar que o conteúdo da peça a um desavisado pudesse incomodar, mas a julgar que precisei passar pelo suspense de aguardar numa fila de espera para conseguir o meu lugar na platéia e a sutileza com que o texto é tratado pela companhia em cena, creio que mesmo um desavisado não vá se ofender com a temática gay. Sobretudo não é preciso pedir licença pra contar uma história de amor gay, é? Bem, fica dito aqui que o texto é do Caio, homossexual contemporâneo do Cazuza, Ney Matogrosso entre outros e que durante sua trajetória falou de medo, morte, sexo e solidão pelo viés de sua experiência homossexual.
A montagem da Cia.Luna Lunera é primorosa, pois conseguiu me convencer de que um teatro de poucos recursos pode sim propor emoção, não que eu seja um babaca burguês que parcele em meu crédito as entradas dos musicais enlatados do Teatro Abril, ou os pastiches globais a preços exorbitantes nos teatros de hotéis de luxo, mas é que vejo muita preguiça na galera da atual cena teatral em inovar a encenação que não seja o que se faz desde os anos 1960, que é o engajamento e fascínio pela caixa preta e escassos objetos em cena, creditando a qualidade do espetáculo aos seu elenco e fatalmente gerando peças ruins (pra não dizer traumatizantes).
Isto posto, consideremos que "Aqueles Dois" com criação, direção e dramaturgia de Cláudio Dias, Zé Walter Albinati, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves e Rômulo Braga faz valer a crença do "fabrico um elefante com poucos recursos" com maestria e dinamismo de quem percorre o Brasil com malas mineiras (Belo Horizonte, Isa!) desde 2001.
À você que se vê sufocado pela urgência dos dias atento ao tic-tac ávido dos relógios pelos resultados positivos, à você que acredita em hipoteca, aplicações na bolsa, saldão de Natal e buffet por R$ 16,90 mas duvida do amor, a você que não acredita no amor gay, esta peça foi escrita e está sendo encenada até o próximo dia 14 aqui em Sampa. Talvez a atmosfera intimista de uma salinha improvisada no SESC Av. Paulista, e sua presença cúmplice do enlace entre Raul e Saul - os nossos protagonistas encenados e defendidos por 4 atores em plena produção de testosterona - o faça acreditar que uma relação de afeto pode surgir em meio a um deserto de almas.
"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra." - Caio Fernando Abreu
Aproveitando o ensejo, informo que o site www.naohomofobia.com.br está recolhendo assinaturas para tornar a homofobia crime em todo a república brasileira. O projeto foi apresentado à vários parlamentares no último dia 27 e conta com apoio de vários artistas e deputados que já votaram a favor da proposta PLC 122-06, mas que agora é analisada pelo Senado. A campanha Não Homofobia tem como meta mobilizar até outubro de 2009 um milhão de pessoas em favor da igualdade de direitos. Eu já votei e você?
★★★★★ Aqueles Dois | Cia. Luna Lunera
Elenco: Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves e Rômulo Braga
R$20,00 | [inteira] |
R$10,00 | [usuário matriculado no SESC e dependentes, +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino] |
R$ 5,00 | [trabalhador no comércio e serviços matriculado no SESC e dependentes] |
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